PUB
Manuel Fernandes Vicente manuelvicente@entroncamentoonline.pt

Para mim o Dia de Natal há de ser sempre o dia do meu inesquecível cavalinho de pau e de cartão grosso que uma vez, há muito tempo, o Menino Jesus me ofereceu, adivinhando um desejo que eu uns dias antes tinha manifestado quando, perguntado pela minha mãe, o revelei.

E assim, o Menino Jesus terá escutado a nossa conversa, ou então, dada a sua condição divina, omnipresente e bondosa, mesmo sendo tão pequenito, terá pressentido este meu anelo. Tudo natural para mim e para esse tempo, que contava também com a cumplicidade silenciosa da minha mãe. E, naquela fria e húmida madrugada de dezembro, em Alenquer (que ganharia mais tarde o epíteto de Vila Presépio), teve artes de fazer descer silenciosamente o cavalinho pela chaminé envolto num papel de lustro azul com muitas estrelas douradas, que lhe redobravam a magia. Foi esse cavalito castanho que andava sobre umas rodas o meu melhor amigo aos três ou quatro anos, companheiro inseparável, até na cama. Estes eram tempos de magia, uma magia intensa e impregnada também num espírito de caridade cristã, de um mistério que permanecia por revelar, e em que até as pessoas na rua, atingidas por este espírito, eram alcançadas por uma espécie de alquimia social que tinha a capacidade de transformar a pobreza abúlica, o cansaço e a tristeza do dia a dia em sorrisos e afabilidade. E agora há sempre aquela voz pequenina que acorda dentro de mim neste dia 25 que fala comigo, e eu a ponho a falar.

PUB

Para mim, o Dia de Natal era também o dia de uma crónica e inefável constipação, abençoada!… Eram tantas as vezes que eu de noite me levantava e, nas pontas dos pés descalços nas lajes (a expectativa não me dava tempo para calçar umas pantufitas debaixo da cama), ia furtivamente até à lareira e à chaminé onde uns pequenos sapatos descansavam ao lado de um presépio de musgo e umas figurinhas de barro pitorescamente pintadas à espera dos presentes pedidos, que eu mais devia parecer um pequeno gnomo transformado num pêndulo noturno. Sabia que o Menino, com as prendas, só as deixaria quando sentisse um silêncio absoluto na casa e, por isso, ia logo deitar-me e fingir que dormia, pois não queria perder o pacote de prendas, onde as majestosas tabletes de chocolate e umas miniaturas de automóveis de corda para brincar no chão eram também peças preciosas, mais que o pijama novo ou o par de luvas de lã que ele deixava, e eu pensava que era mais para aliviar o carregamento que devia transportar. Não havia de ser por incúria minha que o Menino Jesus chegasse e partisse sem cumprir a sua missão e o meu contentamento.

Os tempos mudaram em todos estes anos e, gradualmente, o Menino nascido numas palhas de um pobre estábulo mediterrânico muito antigo deu lugar ao Pai Natal, com um trenó bem fornecido. E também o presépio de musgo e com figuras em barro (muito melhor do que as composições com legos), com São José, a Virgem Maria, uma manjedoura, o burrinho, a vaquinha, pastores e um rebanho, a que se acrescentava muitas vezes os Reis Magos (que ofereceram ouro, incenso e mirra) e a estrela de Belém, para os guiar pelo caminho, foi substituído por uma próspera árvore de natal nórdica ornamentada com os mais incríveis adereços e decorações hodiernas, renas e trenós a deslizar na neve, quando em Belém raramente terá nevado. De resto, o presépio tradicional português faz questão de enriquecer o núcleo duro e bíblico pos primeiros presépios em argila, acrescentando-lhe algo de extraordinário, mas que mostra bem a nossa adesão à causa da Cristandade, com personagens como a lavadeira e a mulher de cântaro à cabeça, grupos institucionais, como as bandas filarmónicas e os ranchos folclóricos, e paisagens como o curral, moinhos, ribeiros e azenhas e castelos quase sempre sustentadas em peças de barro produzidas à mão.

É claro que esta mudança de simbolismos não foi ingénua, nem inconsequente, nem vã. Foi mais que isso, quis representar também uma alteração no paradigma social, económico, cultural e até religioso, substituindo o ideal da humildade, do desapego e do despojamento, como virtudes que purificavam e engrandeciam, pela epifania do consumo, hélas, a pose do poder e da ostentação. E aproveitou a disponibilidade afetiva das pessoas para a converter em disponibilidade gastar e consumir bens e luxos adquiridos nas basílicas do dispêndio.

Tudo isto correspondeu a uma lenta laicização da sociedade (eu diria, até da própria Igreja de Jesus Cristo de Nazaré), em que a devoção e a doutrina primitiva, com o seu quid de genuíno altruísmo, solidariedade e até comunitarismo (há mesmo quem veja nestes aspetos de ajuda mútua e vida frugal e solidária uma das razões e dos segredos do seu sucesso como movimento religioso) foram substituídos por coisas bem menos humanitárias e bem mais tangíveis, em que passaram a pontificar a publicidade, o marketing, a troca de presentes, o espírito de concorrência e de vencedor do capitalismo liberal e as play-stations. E depois, há o lado das penumbras que toda esta féerie provoca. Está o lado de quem dela já não comunga por a um canto da mesa já não ver sentado quem nele, com um rosto enrugado mas ainda capaz de um sorriso, neste dia de Consoada sempre se sentava. Ou o dos excluídos que não gastam por não ter com que gastar. Ou não gastam, por não ter a quem oferecer, nem que seja uma suave blandícia. Para estes, o Natal, longe de ser uma epifania, tornou-se num lugar de ansiedade e até de exclusão, como se fossem leprosos impedidos de ultrapassar a ombreira da porta.

Conta-se que um dia, num país longínquo e montanhoso, mas aonde a Cristandade chegara já através de abnegados missionários portugueses, celebrava-se a Consoada à mesa de uma abastada família da capital quando o velho e respeitável patriarca da família, homem virtuoso e de longas barbas brancas, avistou não muito longe de casa, sentada a repousar sobre uma laje, uma pobre mãe que mal podia dar agasalho ao filho que trazia ao colo e procurava aconchegar. Aproximou-se dela, e rapidamente também se apercebeu da magreza de ambos, ela viúva e sem teto nem trabalho, e o menino padecendo pela infelicidade da mãe.

− Não temos nem uma côdea de pão para a nossa Consoada, senhor, e o meu menino treme já com o frio que começa a cair… − disse a mulher, mal conseguindo que a voz conseguisse chegar ao fim da frase.

− Quem dá aos pobres, empresta a Deus – repetiu o aforismo para dentro de si o respeitável patriarca. Pediu então à mulher para o acompanhar e em casa, na mesa onde todos já consoavam, destinou um lugar para os dois se sentarem e consoarem com a sua família.

No final, foi ao presépio familiar feito junto à lareira e retirou todas as figuras de prata que nele se encontravam, meteu-as num saco e entregou este à mulher:

− Leva este saco contigo, não levas pão, mas levas algo com que o poderás comprar para ti e para o teu menino. A mulher agradeceu e partiu. Consoada terminada, e todos foram deitar e descansar.

Na manhã seguinte, ao levantar-se para ir buscar as prendas de Natal junto à lareira, o mais pequeno da família ficou maravilhado com o que estava perante si e foi a correr para chamar o avô patriarca:

−Avô, vem ver, o nosso presépio está cheio de figuras de ouro…

PUB