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Manuel Fernandes Vicente manuelvicente@entroncamentoonline.pt

O país celebra hoje, 5 de outubro, com um feriado nacional, os 110 anos ainda não sei bem se da deposição da monarquia, se da implantação de uma república em Portugal, ou se de nada. Há umas décadas, em 1910, um grupo de cidadãos mais politizados e radicalmente hostis à coroa nacional, comandados por Teófilo Braga e com a ajuda de alguns oficiais e sargentos do exército, pensaram que substituindo um rei, que nem a tropa monárquica quis defender, e impondo um regime republicano, se resolveriam os complicados problemas do país que, aliás, se agravavam por cada ano que passava. Proclamaram a república, promulgaram uma nova Constituição para o país, escolheram nova bandeira com novas cores, cunharam moedas novas para substituír as antigas, e um belo e patriótico hino passou a dar voz à esperança coletiva e ao imaginário lusíada. Também não esqueceram de encontrar um busto viçoso e perfeito de mulher para simbolizar a nova realidade, que fazia prescrever o fim de todos os títulos de nobreza e se enchia de promessas de direitos e garantias de liberdade e igualdade. Daí para cá, todos os anos, a memória dessa mudança política costuma ser celebrada com pomposas paradas militares, a condecoração e a atribuição de comendas e de insígnias de grandes-oficiais a civis, algum discurso para galvanizar a hostes, mas que apenas as consegue deprimir mais.

Dificilmente se encontrará no calendário uma data mais ilusória, falaciosa e cheia de equívocos. E, no entanto, excetuando o interregno imposto há uns anos pelo ex-primeiro-ministro Passos Coelho, invocando imperativos da troika, continua a celebrar-se alegremente, não se sabe é bem porquê.

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É verdade que os últimos anos da monarquia foram muito tristes e lastimáveis, e já poucos acreditavam que a realeza resolvesse as crises financeiras, económicas, sociais, políticas, ou fossem quais fossem, que afundavam o país e o deixavam anémico sem remédio à vista. Ainda no tempo de D. Carlos, com uma profunda crise social, o chefe do Governo, o ditador João Franco, decidia impor ainda mais restrições e trevas ao povo, enquanto cresciam as regalias e as despesas com a Casa Real. Os escândalos sucediam-se, e a corrupção e os subornos envolvendo gente influente eram comuns e sem fim orevisto. Daí até 5 de outubro de 1910 os protestos populares não pararam, o mal-estar era geral e o golpe de estado patrocinado pelos revolucionários republicanos aconteceu rápida e inevitavelmente, com quartéis amotinados, tropas sublevadas na rua e navios revoltosos no Tejo.

Os republicanos tinham tudo a seu favor. O povo lagartixa fartara-se da monarquia, de financiar a seita da Casa Real e da instabilidade política e social − e era favorável aos novos ventos e às suas promessas de regeneração, liberdade, igualdade e fraternidade.

Contudo, o que a I República Portuguesa teve para oferecer ao país foi uma sequência espantosa e quase caricatural de episódios de agitação social e instabilidade política, mais repressão, tumultos e prisões, censura, assassinatos e outras brutalidades, pobreza e sopa dos pobres, e emigração em vez de liberdade, reanimação da agricultura e produção. A par disso, a partir de janeiro de 1917, um enorme esforço de guerra foi pedido aos portugueses por causa da participação no primeiro conflito mundial, enquanto o clima de descontentamento crescia sempre que chegavam as novas listas de mortos e feridos nas frentes de batalha. O país ficou fragmentando pelo narcisismo das pequenas diferenças e dividido pelos acompamentos de seitas para todos os gostos unidas pela única convicção que as ligava nos seus zelos e excessos ideológicos: a de que fraternal e genuinamente todas se odiavam. E assim, o território prosperava com liberais, democráticos, evolucionistas, conservadores de direita, católicos e anticlericais, monárquicos, anarquistas, anarco-sindicalistas, unionistas e, mais tarde, bolcheviques, sidonistas e outras estirpes de um mundo de lunáticos e descontentes. Até que, sem ter sido possível encontrar uma côdea de bom senso, a nau da República chegou ao seu fim inevitável com o golpe de 28 de maio de 1926, a antecâmara do Estado Novo, do salazarismo e da ditadura e excessos que só pararam em 1974.

Acresce ainda dizer que esta I República, em que predominava a influência do Partido Republicano Português, que praticamente se tornou dono do estado, e com muitas clientelas a chegar-se à sua mão, é um excelente exemplo de falta de democracia e de representatividade popular, se possível, abaixo ainda da instituição régia e constitucional que há já muitos anos deixara de invocar o seu “direito divino”. É verdade que houve eleições. Mas quem é que votou? Pouca gente: em 1913 apenas 30 por cento dos homens com mais de 21 anos tinham direito a votar. E, mesmo assim, em 1925, dos poucos que podiam votar, apenas 14 por cento o fizeram. De fora dos sufrágios ficaram desde logo as mulheres (metade da população) e os analfabetos (boa parte dos portugueses eram-no, sobretudo no interior). Fora das castas fanáticas, poucas pessoas tinham direitos políticos e destes, com o tempo e as ilusões esmorecidas e atraiçoadas, eram cada vez menos os que se apresentavam nas urnas. Em 1920 e no ano seguinte a inflação era enorme, tal como a fuga de capitais, as greves generalizavam-se e parecia incapaz a missão civilizacional e redentora da I República, ou melhor, do que o fanatismo, as conspirações e as brutalidades de todo o tipo fizeram dela.

Se há alguma coisa a celebrar nestas comemorações do golpe de 5 de outubro de 1910 é a lição que trouxe pela negativa, o que não deve ser feito e aquilo que não devemos repetir. Chegou de fanatismo, de anarquia e de seitas!… 

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