Será que «Urbano», personagem da «Lusitânia Transformada», esconde a biografia poética de Camões? António Cirurgião, estudioso desta novela pastorícia, de Fernão Álvares do Oriente, assim o defende, como hipótese não gratuita. A presença de Camões, debaixo das mais variadas facetas, do homem ao poeta, do lírico ao épico, é uma constante na obra de Fernão Álvares. O desterro aqui em causa, terá sido físico e para as margens do Nabão, na confluência com o Zêzere, perto de Punhete (Constância). Camões terá conhecido Fernão Álvares na Índia. E, por curiosidade, só há três indivíduos registados na Universidade de Coimbra no século XVI, com esse nome. Um deles é de… Punhete. Na nossa crónica apresentamos ainda prováveis indícios (pontas soltas…) de que o desterro do poeta pelo Ribatejo (Punhete?) poderá ter sido físico.
«Lusitânia Transformada» é uma novela em prosa e verso, constando de três livros. A obra, de Fernão Álvares do Oriente, veio a público pela primeira vez , postumamente, em 1607, através de Luys Estupinan, sob responsabilidade do livreiro Domingos Fernandes, o qual declara que o autor já tinha morrido. A primeira reedição surgiu em 1781, na Academia Real das Ciências de Lisboa, sendo da responsabilidade do seu sócio, o padre Joaquim de Foyos.
Obra profundamente simbólica em que o autor critica fortemente o espírito demasiado mercantilista dos portugueses a fazer lembrar o episódio do “Velho do Restelo” de «Os Lusíadas».
À semelhança do que sucede na literatura bucólica e nas novelas pastoris, também aqui realidade e ficção parecem de mãos dadas…
Uma obra de literatura portuguesa que, nas palavras de António Cirurgião (literato que melhor estudou o livro e em que nos apoiamos bastamente), «melhor reflecte a letra e o espírito da arte maneirista, tal como foi definida e caracterizada por Jorge de Sena». Nesta obra tudo está em crise: A Nação, o patriotismo, a austeridade de princípios, a poesia, a religião oficialmente instituída, a santidade dos costumes, a sociedade familiar, o amor entre o homem e a mulher… a própria vida. Para resolver a crise da poesia Fernão Álvares (segundo António Cirurgião) propõe o exemplo de Camões; para resolver a crise da vida propõe o culto da arte. O autor faz da alegoria recurso para atacar pessoas reais e instituições religiosas e sociais. O leitmotiv da «Lusitânia Transformada»? Diz Cirurgião: «é o esforço constante que o homem faz para se transcender, para resolver em Deus a sua condição humana». Não é pois ao nível terreno que as personagens da «Lusitânia Transformada» procuram realizar-se: é ao nível divino. Daí, a condenação da guerra, do mercantilismo, das vaidades mundanas, da vida fútil da corte, e a busca angustiosa da paz em Deus, explica a eminente professor que nos anos 90 estimulou pessoalmente o autor da presenta crónica a prestar atenção à obra de Fernão Álvares.
Biografia da personagem Felício ou autobiografia poética de Fernão Álvares do Oriente? Seguindo de perto os estudos de Cirurgião podemos dizer que o protagonista,Olívio/Felício se estabelece numa arcádia pastoril, mas margens do Nabão, na sua confluência com o Zêzere. E tem dois nomes, para o nosso ilustre professor: «Chama-se Olívio enquanto peregrino pelo Oriente, pela África e pelas ilhas do Mar da China, do Oceano Índico e do Atlântico; e chama-se Felício a partir do momento em que, em virtude de um rito de iniciação ou de passagem, tão característico de algumas novelas pastoris, mudando de estado, encontra a felicidade e passa a viver a vida de pastor nas margens do Nabão, numa autêntica Arcádia, em companhia de outros pastores. Qual metamorfose. Mas, prossigamos nas citações: «Felício dá fim à sua história, com palavras que fazem lembrar Camões, quando chega com Lusmeno e outros companheiros à vista das «douradas áreas do celebrado Tejo, douradas antigamente na opinião de estrangeiros e regadas agora com as lágrimas dos naturais». Uma breve nota a de que nos inquéritos paroquiais a seguir ao terremoto de 1755 se encontra notícia sobre o ouro de antigamente existente nas areias do Tejo em Punhete.
António Cirurgião fez uma leitura atenta quer da obra de Montemor (poeta, dramaturgo e músico que passou os últimos tempos em Itália), quer de Luís de Camões e de Diogo Bernardes e, recorrendo ao método analógico, quanto ao sentido oculto dos criptónimos, usados pelos poetas em questão, revela: «não nos foi difícil chegar à conclusão que o Sireno e o Lusitano da «Lusitânia Transformada» é Jorge de Montemor, que o Almeno e o Urbano é Luís de Camões, e que o Alcido e o Limiano é Diogo Bernardes». E, mais importante e para o nosso caso, a conclusão de que «em Urbano se esconde a biografia poética de Camões, com tantos pontos de coincidência com as que constam de documentos irrefutáveis».
A presença de Camões, debaixo das mais variadas facetas, do homem ao poeta, do lírico ao épico, é uma constante na obra de Fernão Álvares. Será a biografia poética de Urbano um eco longínquo da vida real de Camões?
António Cirurgião admite que o pastor pelo qual Fernão Álvares quer representar Camões, além de «Almeno», será «Urbano», afinal o pastor que vive onde o Nabão entra no Zêzere, isto é, junto a Punhete (actual vila de Constância).
Urbano surge-nos pela primeira vez na «Lusitânia Transformada», na prosa II do livro primeiro. O narrador apresenta-no-lo como sendo do Tejo e como desterrado:
«Viera Urbano com parte de seu rebanho da ribeira do Tejo, pátria sua, desterrado à seu pesar, c com o sentimento desta ausência jazia tão esquecido de si, como de seu gado, o qual em redor dele balado parecia, que celebrava exéquias ao seu pastor.»
Aproxima-se dele um outro pastor, chamado Frondoso, o qual «por lhe dar algum alívio amigavelmente (l.T., fl 18), começa a dialogar com ele em versos.
E surge assim uma égloga cujos interlocutores são Frondoso e Urbano, como na Égloga I de Camões são Frondélio e Umbrano, égloga que Fernão Álvares se refere expressamente pela boca de Urbano. António Cirurgião chama à atenção, desde logo, para a semelhança dos nomes das personagens.
A certo momento, e dando continuidade ao raciocínio de Cirrugião, na égloga de Fernão Álvares, citemos, «Urbano alude ao seu desterro e declara, inequivocamente, que o castigo que lhe impuseram é injusto». Desterro real ou imaginário, questão velha e bem controversa?
Percorrendo a obra de Camões, alega o professor, diversas são as passagens em que ele se queixa de ter sido posto em exílio, sem que o tenha merecido.
«Dos bens passados nada mais lhe resta que uma magra lembrança. Urbano tinha sido feliz na vida, ainda que por escassos momentos». O lugar da felicidade? «Ali onde levado do forçoso/Ímpeto o Tejo com licor mistura/Do mar salgado o seu licor gostoso». Por outras palavras, tinha sido Lisboa, conclui António Cirurgião.
Vamos às analogias: «Convém esclarecer que Almeno, personagem de duas églogas de Camões, encontrou em Lisboa escassos momentos de felicidade e grandes desilusões. Também o poeta Camões, na elegia que começa «O Sulmonense Ovídio desterrado», estende «os olhos saudosos» para o Tejo e revive os dias de ventura que aí conhecera, ao mesmo tempo que suspira pelo regresso».
Quem terá sido o causador da desgraça de Urbano? Responde Cirurgião que alguém movido pela inveja, «Em trajos disfarçada d’honra, e zelo». Mas alguém que tinha valor e influência, pois, opina o nosso professor, acusou Urbano ao rei: «Com esse nosso grão pastor fizeram/Que em prisão dura me pusesse, alheio/D’erros, que sendo seus, em mi puseram».
Na célebre Carta de Perdão, descoberta pelo Visconde de Juromenha na Torre do Tombo, diz-se que Camões esteve preso no Tronco de Lisboa. Os dados do documento emanado de D. João III e os dados da transcrição da Lusitânia Transformada, respeitarão a prisões diferentes, no entender do autor da presente crónica. Tratam -se de motivos e de lugares diferente. E, aqui, permitam-me alguma especulação.
O local da prisão? «Uma rocha mui alta está no meio/Das águas, onde o Tejo caminhando/Penetra de Neptuno o largo seio./Ali, onde com sonoro som, e brando/Das claras águas leva a o mar o peso/Que d’elee n’outra parte está tomando/Me teve em prisão dura hum odio aceso./Por me livrar d’outras prisões estranhas/Em que do amor me tinha o laço preso».
António Cirurgião põe a hipótese de Fernão Álvares se referir à Torre do Bugio, dizendo que foi prisão no tempo. Face aos dados que actualmente temos disponíveis, à data, por conseguinte, antes de 1550, seria a Torre de Belém o local da alegada prisão, concordando nós neste ponto, com Maria Clara Costa. É verdade que não sabemos se houve prisão em Lisboa e, depois, degredo para o Ribatejo. Ou se a prisão, a ter existido, foi cumprida em mais do que um sítio. O que releva de tudo isto são os indícios de um eventual desterro físico e a necessidade de em torno destes se avançar na investigação. Porque a biografia do poeta não se pode desligar da sua obra. E ligada à sua obra está, de forma muito arreigada, a tradição local.
Quanto à pessoa que mandou prender Luís de Camões e Urbano? António Cirurgião interpreta assim os dois textos: «Segundo a Carta de Perdão (referente à prisão no Tronco, citamos), outra autoridade que não o rei, deve ter ordenado a prisão; segundo a Lusitânia Transformada, a pessoa que ordenou a prisão de Urbano foi «o nosso grão pastor». Que o «grão pastor» seja o rei, não parece haver dúvidas para Cirurgião que invoca a convenção bucólica, para justificar «uma das maneiras de se referir ao soberano. Segundo a lei do tempo, prendia-se em nome do rei», aduz.
O motivo da prisão, verdadeiramente? O pastor Urbano foi metido na prisão porque alguém, levado pela inveja, lhe cobiçou a pessoa amada. Assim o entende Cirurgião: «E porque o gado que eu próprio tinha/Possuíssem estranhos».
O nome da amada de Urbano é Laurélia. Porque razão Fernão Álvares, admitida a hipótese de estar a pensar no poeta camões e na sua biografia, ao falar, de Urbano, chama Aurélia à sua amada? Cirurgião lança a hipótese: «Para o aproximar de Petrarca, que celebrou Laura? Também isso é possível numa obra tão impregnada de simbolismo».
Batendo na tecla…«A Lusitânia Transformada é explícita em nos apresentar Urbano desterrado (desterro físico, que não moral), não em Santarém, mas nas margens do Nabão, na confluência deste com o Zêzere, perto de Constância. Isso nos diz Urbano na égloga : «Que do meu Céu mais apartado «agora/Nestas ribeiras do Nabão misturo/Com suas águas, que est’alma chora».
Em a «Lusitânia Transformada», argumenta António Cirurgião, «todos os pastores se sentem felizes na nova vida que abraçaram voluntariamente. E se há algum que permanece temporariamente triste e infeliz, como é o caso de Urbano, isso só significa que o corpo vive no campo, mas a alma ainda continua presa ao mundo e aos seus enganos».
Quanto à questão de fundo: «Há duas passagens na Lusitânia Transformada em que talvez possamos apoiar-nos para provar que na personagem Urbano quis Fernão Álvares celebrar Camões. Trata-se de duas glosas: a primeira de uma oitava expressamente atribuída a Camões e a segunda de um soneto que tem sido atribuído a vários autores, entre os quais se conta Camões. Ambos os poemas em que se encontram as glosas são églogas. Tanto num caso como noutro, um dos interlocutores é Urbano. No primeiro dialoga com Frondoso e no segundo com Jacinto. Em ambas as ocasiões os interlocutores pedem a Urbano que abra o caminho: «Porque no campo agreste se conheça/O brando som, de que a Cidade goza/E dele também goze o nosso outeiro/Eu quero te seguir vai tu primeiro».
Para satisfazer o pedido de Frondoso, Urbano começa então a glosar a oitava da Égloga I de Camões – oitava que começa assim: Toda alegria grande e sumptuosa».
António Cirurgião revela-nos que aqui, Fernão Álvares, «empresta ao conflito entre a corte e o campo, um carácter polémico, fazendo eco de uma querela contemporânea de todas as idades (a velha fábula do rato da cidade e do rato da aldeia)».
Já quanto a os versos supracitados, postos na boca de Frondoso, a precedê-los temos uma fala de Urbano que Cirurgião destaca: «Desta mudança de que já cantaram/Frondelio lá no Tejo Umbrano outr’ora/Quando de seu Theonio celebraram/Exequias, que inda entoa o Eco agora: Cantemos nós também (pois se declara/Em nosso dano os tempos mais cad’ora)/Tomando aquela estância por sujeito/De que sempre te vi tão satisfeito: Aquela estância, digo, que começa/Toda alegria grande e sumptuosa/Já pode ser que assi cantando esqueça/Tantas magoas est’alma saudosa».
A argúcia do nosso professor, novamente: « Reparando bem, não é difícil verificar que Urbano propõe a Frondoso a glosa de uma oitava de um poema seu (de Urbano) que Frondoso admirava tanto. Quanto à outra glosa, em que Urbano e Jacinto discutem o assunto, pra melhor compreender a razão de ser do argumento a fim de provar que Urbano deve representar Camões: O poema glosado é o belíssimo soneto «Horas breves de meu contentamento».
Jacinto é poeta do Douro e Urbano É poeta do Tejo. E se esses versos que Urbano canta fossem, como os outros eu ele cantara antes, em circunstâncias idêntica, a pedido de Frondoso, do poeta Camões?, pergunta António Cirurgião.
Segundo Faria e Sousa e citando Cirurgião, Fernão Álvares apenas glosou versos de Camões na Lusitânia Transformada. Quanto a este soneto Cirurgião não tem dúvidas: «apresenta uma versão muito próxima da que aparece na Terceira parte das Rimas (1668), de Camões. O soneto «Horas breves do meu contentamento», adita o professor, foi atribuído pela primeira vez a Camões, em obra impressa, por Pedro de Espinoza, em «Flores de Poetas ilustres» (Madrid, 1605). O Códice Riccardino, citado por Jorge de Sena, também o atribui a Camões.
Quanto à presença de Camões sob o criptónimo Urbano, remetemos os leitores do jornal para as obras abaixo citadas, sem o que não poderão obter mais perfeita conclusão acerca da tese de Cirurgião, académico da maior simplicidade e honestidade intelectuais que chegou a integrar os órgão sociais da Casa-Memória de Camões.
Em 1550, Camões, pretendeu embarcar para a Índia e teve de apresentar fiador. Isto, para José Hermano Saraiva, «significa necessariamente que já então fora objecto de perseguição judiciária, porque a exigência do fiador representa que já estava condenado».
Mário Domingues, jornalista e historiador também andou no pé da investigação camoniana: «Quanto à intenção de seguir para a Índia nesse mesmo ano (1550, recordamos nós), parece confirmada por Manuel Faria e Sousa que, estando em Madrid em 1643, diz ter ali conhecido em forma de extracto ou resumo dos Livros da Casa da Índia, esta inscrição, referente a 1550:«Luís de Camões, filho de Simão Vaz e Ana de Sá, moradores em Lisboa, à Mouraria, Escudeiro, de vinte e cinco anos, barbirruivo; trouxe por fiador a seu pai; vai na Nau São Pedro de Burgaleses».
Maria Clara Pereira da Costa, antiga conservadora da Torre do Tombo e admitia «ser possível que a leitura do assento na Casa da Índia, revelado por Faria e Sousa, tenha sido incorrecta, até porque este não o viu». A então investigadora da Associação da Casa-Memória de Constância fundamentou a sua tese em como o poeta terá nascido por volta de 1517, aconselhando o regresso à simplicidade da informação de Severim de Faria.
Faria e Sousa comenta assim o seu achado (seguindo a obra de Mário Domingues: «Esta Nave era la en que iba el Vi-Rey que entonces passava a la India; e su nombre Don Alonso de Norona. Estos assentos se hazian en títulos diferentes, conforme el puesto en que cada persona iba a servir. Y el Poeta estava sentado en el titulo de los – Hombres de Armas.»
E acentua, por fim, o comentador: «Aunque el Poeta se huviesse alistado el anno de 1550, no se embarcó.»
Não embarcou de facto, segundo o confirmam os acontecimentos em que Luís Vaz andou envolvido, desde princípios de 1550 a meados de 1553.
Este passo camoniano é assim interpretado por Mário Domingues: «Admite-se, por inferência, que ele se alistara em 1550, no seu regresso de África. Mas quando investigadores procuraram nas fontes os elementos que confirmassem a asserção de Faria e Sousa, que deviam existir no Manuscrito Nº 123 da Colecção Pombalina, que tem o título de «Memória das Pessoas que passaram à Índia nos anos de 1504 a 1628», descobriram que faltavam as folhas que abrangem os anos em que se devia registar a Armada na qual Camões partiria para a Índia. Poder-se-ia admitir que o autor do furto visasse outra pessoa que não fosse o poeta. Infelizmente, não é possível duvidar do verdadeiro alvo dessa anónima perseguição, porque, elucida-nos Teófilo Braga – o mesmo vandalismo se deu com os Manuscritos genealógicos de Manuel Severim de Faria (ainda parente do poeta) extraídos da Torre do Tombo, quando ela estava no Castelo de São Jorge, ficando em branco as páginas relativas à família Camões.»
Contudo, as folhas que faltam no Manuscrito Nº 123, relativas aos anos em que Luís Vaz teria embarcado para a Índia, parecem confirmar mais veementemente a sua inscrição. Diz Mário Domingues ainda: «No extracto que Faria e Sousa diz ter visto Madrid cerca de um século depois (em 1643) é que surgem alguns pontos de dúvida. Há, pelo menos, um pormenor que nos desconcerta: «trouxe por fiador a seu pai». Seria Simão Vaz ainda vivo nesse data? Por outro lado, confirma que, depois de o poeta regressar da África, a família Camões (pelo menos, a mãe, a que se atribui o nome de Ana de Sá) vivia na Mouraria. É de estranhar que o registo apenas anotasse como sinais particulares a barba ruiva – barbirruivo. Porque não apontou a falta da vista direita, que passou a ser nele um sinal característico, facto bem eloquente e corroborado por iniludíveis testemunhos». Tudo visto e apreciado, haverá nestas matérias indícios de uma prisão que não a do Tronco? É o que parece. Não há como ignorar estas pontas soltas…
A elegia do desterro é um dos poemas mais vezes citados pelos biógrafos que têm procurado esclarecer o mistério passional que antecedeu a partida para a Índia. Hermano Saraiva defendia que a importância da elegia como documento autobiográfico está precisamente na significação do conjunto do poema. Do mesmo modo que Ovídio esteve desterrado no Ponto, o Poeta esta desterrado do bem que noutro tempo possuía, A ideia do desterro resulta porém de outras alusões que não de uma situação sentimental. Exemplo disto, para Saraiva, são os versos «daqui me vou, com passo carregado/a um outeiro erguido, e ali me assento». Defendia Saraiva que em Camões não há palavras vás. E que o sentido literal, cita-.se «é o de passos dificultados por uma carga e que se usava então amarrar com correntes de ferro um peso aos pés do prisioneiro». Saraiva socorre-se, ainda, da linguagem judiciária da canção «Tomei a triste pena (a qual figura já na edição de 1595, diz) «cuja autenticidade nunca foi posta em dúvida por ninguém». E conclui_ «toda a canção é referente a um processo judicial no qual o poeta ocupava a função de réu, tal como o direito das Ordenações Manuelinas as definia».
Justino Mendes de Almeida, que tantas vezes nos incentivou a estudar e investigar Camões, tinha porém, uma perspectiva mais cautelosa – porque académica – sobre como interpretar a questão do desterro físico a partir da poesia:
«E porque o nosso Poeta se compara a Ovídio, logo houve quem pensasse (Faria e Sousa entre os primeiros) que esta elegia aludia, porque escrita em Portugal, a um primeiro «desterro» de Camões, por seus amores ilícitos, algures no Ribatejo, e também porque nela são usados vocábulos como «degredo, pena, desterrado», mas a devida interpretação, foi-lhe dada por Costa Pimpão: «Por mim, e salvo o devido respeito, não dou a tais palavras senão o valor poético de ausência do bem amado, sem me preocupar de saber se tal «bem» era real, ou imaginado. A poesia vale o que vale, independentemente das congeminações biográficas que à sua volta se têm forjado, e que não se apoiam na menor base crítica. Nela encontra-se o «homem», certamente, mas encontra-se também o «poeta», e este interessa mais do que tal ou tal circunstância imaginária da sua vida». Esta passagem consta dos cadernos dos Fóruns Camonianos do Centro Internacional de Estudos Camonianos. Vem ao caso referir que o autor de presente crónica teve por professor de Literatura Portuguesa, Noel Mendes, discípulo de Costa Pimpão, e conhece bem as reservas do ilustre professor de Coimbra sobre o cânone camoniano. O que nos distingue (a Constância) das restantes terras da antiga moirama? O ter recebido no seu seio o maior poeta de todos os tempos lusitanos que aqui terá escrito parte da sua obra, inspirado pelas gentes, amores e paisagens (?). É nisso que acreditamos. O que nos move? O amor próprio, senhor Doutor!…
José Luz
(ex-presidente do Conselho Fiscal e ex-associado da Casa-Memória de Camões em Constância).
PS – Não uso o famigerado AOLP.
Nota 1 .- «Tendo consultado o Arquivo da Universidade de Coimbra, viemos a encontrar três indivíduos do século XVI com o nome de Fernão d’Álvares que estudaram na Universidade de Coimbra: um era filho de Álvaro Fernandes e natural de Santarém. Matriculou-se em 1540 e obteve o grau de bacharel em Medicina em 1555 e o de licenciado em 1557. Outro, natural de Barcelos, depois de ter estudado em Salamanca entre 1553-1554, transferiu-se para Coimbra em 1557 e veio a obter o grau de bacharelado em 1559. Finalmente, um terceiro Fernão d’Álvares, filho de Pantaleão Rosado, natural de Punhete, matriculou-se na Universidade de Coimbra em 1573, recebeu o grau de bacharel em 1578 e a formatura em 1580, tendo prestado provas de curso em Cânones entre 13-11-1573». – In Cirurgião,
António (1976). «Fernão Álvares do Oriente» – O Homem e a Obra». Fundação Calouste Gulbenkian, Centro Cultural de Paris. Paris.
Nota 2 – António Cirurgião, «Professor universitário e ensaísta. Estudante de Direito, fez estudos de Filosofia e Teologia. Emigrou para os EUA em 1962. Optou então pelo curso de Letras, fez o M. A. (Master of Arts – mestrado) em Francês, no Assumption College, Massachusetts, e o Ph. D. (doutoramento) em Espanhol e Português, na Universidade de Wisconsin, sob a orientação de Lloyd Kasten e Jorge de Sena. Leccionou Espanhol e Francês na Kansas State University e Espanhol, Francês e Latim na Universidade de Nevada e foi contratado em 1969 pela Universidade de Connecticut, em Storrs, leccionando aí Espanhol e Português. Fez contrato vitalício com esta Universidade em 1973 e foi promovido a professor catedrático em 1980. Em 1983 e 1987 leccionou na Universidade de Santa Bárbara, Califórnia, na qualidade de professor visitante. Para além das obras abaixo mencionadas, tem no prelo De Eça a Jorge de Sena e é o responsável pelas seguintes edições: O Cancioneiro de D. Cecília de Portugal, 1972; Fernão Álvares do Oriente, Lusitânia Transformada, 1985; Duarte Dias, Várias Obras em Língua Portuguesa e Castelhana, 1991; Manuel Quintano de Vasconcelos, A Paciência Constante: Discursos Poéticos em Estilo Pastoril, 1994; João Nunes Freire, Os Campos Elísios, 1996. Tem colaboração dispersa por várias revistas, nomeadamente Biblos, Revista da Universidade de Coimbra, Boletim Cultural da Assembleia Distrital de Lisboa, Ocidente, Brasília, Nova Renascença, Hispania (E.U.A.), Arquivos e Vértice. Colaborou também em dicionários de literatura e história americanos, brasileiros e portugueses. Em 1981 foi agraciado pelo Presidente da República Portuguesa com o grau de comendador da Ordem do Infante D. Henrique. In Dicionário Cronológico de Autores Portugueses, Vol. VI, Lisboa, 1999.
Fontes bibliográficas da presente crónica
Pereira da Costa, Maria Clara (1977). «Casa de Camões em Constância». Com estudo do arquitecto Jorge Segurado e Nota explicativa Manuela de Azevedo. Obra custeada pelo Fundo de Fomento Cultural da Secretaria de Estado da Cultura.
Severim, Manuel de Faria. «Obras do grande Luís de Camões – Príncipe dos Poetas Heróicos e Líricos de Espanha, novamente dadas à luz com os seus Lusíadas comentados pelo licenciado Manuel Correia. MDCCXX. Oficina de Joseph Lopes Ferreira.
Cirurgião, António (1976). «Fernão Álvares do Oriente» – O Homem e a Obra». Fundação Calouste Gulbenkian, Centro Cultural de Paris. Paris.
Domingos, Mário (1968). «Camões – a sua vida e a sua época». Edição Romano Torres.
Do Oriente, Fernão Álvares. «Lusitânia Transformada» – Introdução e actualização de texto de António Cirurgião. Imprensa Nacional-Casa da Moeda. 1985.
Cirurgião, António. (1972). «Será Camões a Personagem da ‘Lusitânia Transformada’». – Número especial comemorativo do 4~centenário da publicação de «Os Lusíadas». Lisboa.
Saraiva, José Hermano (1994). «Vida Ignorada de Camões». Publicações Europa-América. 3ª edição, revista e aumentada. https://www.e-cultura.pt/patrimonio_item/7457 http://www.monumentos.gov.pt/site/app_pagesuser/sipa.aspx?id=4065
«A Camões», colectânea de estudos comemorativa da inauguração da Casa-Memória de Camões em Constância. Luís de Camões, poeta lírico, Justino Mendes de Almeida. Edições Colibri e Centro Internacional de Estudos Camonianos da Associação da Casa-Memória de Camões em Constância.2002.