Num período do ano em que as festas da cidade estão aí, e se conjugam por uma feliz coincidência com as celebrações populares em honra de São João Batista, há sempre um pretexto acrescido para refletir um pouco sobre a singular origem do Entroncamento, e também sobre a estranha forma em como se desenvolveu a partir do efeito âncora fundado precisamente no seu nascimento.
Numa perspetiva formal, o Entroncamento é cidade desde 20 de junho de 1991, veste portanto a brilhante mitra urbana, que contempla as urbes com melhores funções e maior prestígio, faz agora 28 anos. E foi-o numa época em que, presidido o executivo municipal por José Pereira da Cunha, o concelho teve uma semana vintage: com poucos dias de intervalo foi desbloqueada a criação de um Museu Nacional Ferroviário (que teria a sede no Entroncamento), anunciou-se publicamente que o terminal português do TGV (Train à Grande Vitesse) seria nas imediações do nosso burgo e, por fim, a vila ferroviária era elevada a cidade, curiosamente após a aprovação-surpresa de uma proposta nesse sentido na Assembleia da República a que a autarquia e as forças sociais e institucionais do município foram, em absoluto, alheias.
Mas se do ponto de vista institucional o Entroncamento é cidade há menos de três décadas, a verdade é que, de um ponto de vista demográfico, social e cultural, é uma cidade há muitas mais décadas. Para ser mais preciso, é-o desde a sua fundação física numa zona que os investigadores consideraram na altura algo pantanosa, e onde D. José de Salamanca determinou que se cindisse em dois o troço ferroviário proveniente de Lisboa: um que se dirigiria rumo ao norte e à Cidade Invicta, e o outro em direção ao leste e ao Alto Alentejo.
O Entroncamento nasceu naturalmente ínfimo, mas a sua matriz fundacional ferroviária era já a de uma cidade. Teria de ser assim, geneticamente urbana, proletária, moderna e cosmopolita (tanto quanto se poderia ser dessa forma nessa altura), e começava no século XIX, com o ímpeto da Revolução Industrial e sem ter passado pelos séculos anteriores. Em poucas décadas o arcaico Entroncamento da Ponte da Pedra e o Casal das Vaginhas começaram a acolher a saga dos camponeses anónimos que deixavam para trás a condenação lenta na lavoura das suas terras para procurar as promessas de uma vida menos má que descortinavam nos caminhos de ferro e entre os silvos das velhas locomotivas a vapor. E foram chegando rumo ao novo burgo. Vinham sobretudo da Beira Baixa e do Alto Alentejo, mas também da linha do Norte, das próprias comunidades por onde o comboio havia desbravado o caminho para facilitar a troca de pessoas, de bens e de ideias. À nova comunidade ferroviária, e para fazerem parte dela, chegaram as gentes de Tramagal, Abrantes, Bemposta, Crato, Santa Eulália e Elvas, de Mouriscas, Fratel, Benquerenças, Vila Velha de Ródão, Castelo Branco e Fundão, e também da Lamarosa até Pombal. Chegaram, por outro lado, vários técnicos e quadros superiores provenientes de outros países da Europa (como o atestam, por exemplo, os nomes de Sozzi, Poitout, Alfaro) e lavradores transformados em proletários das povoações mais próximas. O Entroncamento atraía indígenas de muitas geografias, costumes, culturas e condições económicas, no fundo todos os que tinham aceitado o desafio de abandonar as suas zonas de conforto das velhas tradições rurais ou não (no Alentejo, Beira Baixa, Norte, Espanha, França ou Itália), e procuraram um modo de vida que julgavam ser melhor para si. E é no acolhimento que faz destas pessoas que para cá se vazam que o burgo ferroviário melhor espelha os sinais da sua urbanidade, bem demonstrada não só na sua planificação urbana ortogonal como numa arquitetura funcional e sem barroquismos, onde a CP e os loteadores que se seguiram optam por criar uma arquitetura genérica e sem história, e um ambiente urbano com apenas dois ou três modelos para moradias (e, mais tarde, prédios de apartamentos) e uma planificação que já se poderia considerar suburbana avant la lettre. Nada de casas personificadas (talvez só o Prédio Paris, demolido há cerca de três décadas, e mais dois ou três edifícios morgados), nem edifícios saídos de imaginações criativas. Projetar habitações em série e construir ruas de edifícios que se mimetizavam era mais barato não só a quem concebia os projetos como a quem comprava ou ganhava o direito de os habitar. Mas havia ainda um outro aspeto que estava presente nesta paisagem dominada pela uniformidade e por um certo monolitismo urbano. E é este o ponto que melhor sustenta a minha perspetiva de o Entroncamento já ter nascido cidade. À povoação emergente chegavam (como, de resto, ainda hoje sucede) pessoas de todo o país para trabalhar, e era necessário construir um ambiente urbano homogéneo e sem particularidades culturais e especificidades geográficas, onde ninguém se sentisse excluído por preconceitos sociais, étnicos ou pelas suas condições de origem. A ideia era a de integrar toda a gente em unidades residenciais semelhantes, e isso contribuiria bastante para um ambiente urbano integrado que não suscitasse prenoções, rivalidades e bairrismos atávicos ou complexos etnogeográficos. A falta de diversidade urbana, por exemplo nos bairros ferroviários, era óbvia e até um pouco entediante. Mas o propósito dos loteadores era outro: criar espaços homogéneos e impessoais, de pouco afeto e muita eficácia, capazes de apagar as diferenças de origem e gerar um ambiente assético, indiferenciado e citadino. No fundo, uma certa visão de modernismo e linearidade, que mais tarde se ampliaram em bairros sem qualquer definição arquitetónica em que o talento dos construtores se esgotou invariavelmente na arte de maximizar o aproveitamento de todos os espaços para a construção (com preços competitivos em relação a Tomar, Torres Novas e Abrantes). Toda esta realidade, conjugada com o efeito de o Entroncamento se ter tornado gradualmente numa cidade-pêndulo com Lisboa, foi atraindo numerosas famílias jovens, e foi criando para a cidade na década de 1970 a má fama de “inchaço urbano” e de “Reboleira do Ribatejo”.