A propósito do protesto dos autarcas pela subida do IVA das touradas para 23%, recupero um texto que há umas semanas publiquei no meu blog e que me parece demonstrativo da necessidade de uma abordagem séria e coerente ao tema, neste caso concreto pelos edis de concelhos com interesses na festa e com tradições taurinas. Este artigo foi escrito, partindo do pressuposto, que não só é de lei, mas também de bom senso, que as Entidades Regionais de Turismo, articulem a sua atuação com as autarquias. Assim o foi, pelo menos, aquando da sua fundação. Segue o texto.
“Ribatejo. Tanto para viver. Muito para contar. Descubra o Ribatejo” é uma brochura editada pela Entidade Regional de Turismo Alentejo e Ribatejo que, através de um grafismo exemplar, procura “vender” os concelhos da lezíria a turistas.
Quando a folheei fiquei tão incrédulo com o que me pareceu ter lido, ou melhor, não ter lido, que redobrei a atenção numa segunda e terceira abordagem. Na verdade, a equipa que a elaborou conseguiu, em 20 páginas sobre os concelhos da lezíria do Tejo, não fazer uma referência direta às touradas.
A brochura organiza-se em torno do conceito “viva” para permitir um duplo sentido de leitura: o de oferecer ao visitante experiências inolvidáveis e o de sublimar as virtudes da região, permitindo concluir que é sua excelência que propiciará inesquecíveis momentos aos visitantes.
Sucedem-se, por esta ordem: Viva a História, Viva o Património, Viva a Lezíria, Viva a Paisagem, Viva a Tradição, Viva a Gastronomia, Viva o Vinho do Ribatejo e Viva a Festa.
Sobre os critérios que levaram à seleção dos conteúdos nada há a dizer. O seu grau de subjetividade tornaria presunçoso considerar que uns são melhores que outros. E a generalidade dos escolhidos, com toda a certeza, gera unanimidade.
Algo me parece, no entanto, difícil de entender. Como é possível mostrar o Ribatejo sem referenciar a lide do touro na praça? Como se pretende vender uma região excluindo, ou procurando esconder, um dos aspetos essenciais da sua cultura e da sua economia?
No Viva a Lezíria pode ler-se:
“Toiro Bravo
O toiro bravo ou toiro de lide, é um dos símbolos do Ribatejo e uma das 50 raças autóctones portuguesas. Criado em liberdade nas grandes extensões de montado e lezíria, o animal é reconhecido pela sua natureza selvagem e por ser um dos elementos fundamentais da prática da tauromaquia.
Descendente de animais primitivos de grande estatura e agressividade, preserva até hoje a figura encorpada e a bravura inata. Ao contrário de outros animais quando invadem o seu espaço, o toiro tem tendência a atacar, o que exige ao campino grande coragem e sentido desafiador.
Para conhecer melhor o toiro bravo e entender por que os ribatejanos respeitam tanto esta raça visite uma das ganadarias da região”
Este campino que aqui se descreve é o de António Ferro e o da propaganda do Serviço Nacional de Informação e Cultura Popular, nos primeiros anos do Salazarismo. Nem ele anda, assim, pelos campos a desafiar os animais, nem a raça (bravura) do toiro, que é a razão da sua criação, é apreciada por turistas no pasto. Só na praça, quando é corrido.
No “Viva a Tradição”, que tem como subtítulo A festa brava e a emoção das gentes, lê-se que “À braveza do toiro, junta-se a braveza das gentes que ao longo do tempo foram colhendo os benefícios daquela terra imensa…” e fica-se sem perceber a razão do subtítulo.
No “Viva a Festa A música, a tradição e os sabores” refere-se à “Festa Brava como uma das muitas celebrações que pode viver no Ribatejo. A agenda anual é intensa e pontuada tanto por festas de tradição antiga como por eventos recentes e inovadores. No Ribatejo celebra-se o cavalo e o toiro mas também a música, a gastronomia ….”.
Quando passamos a uma agenda mensal, verificamos que, por exemplo, na listagem das atividades da Feira Nacional de Agricultura / Feira do Ribatejo, em Santarém, não consta uma única tourada. Nem em Almeirim, nem na Chamusca, nem em Benavente, nem no Cartaxo, nem em Coruche, nem em Salvaterra de Magos ou na Azambuja, nem em lado nenhum. Eclipsaram-se. Deixaram de se realizar touradas no Ribatejo.
Quando um responsável público, eleito ou nomeado, não compreende que a cultura genuína está para além do politicamente correto, não presta um bom serviço à comunidade que é suposto servir. Quando numa região profundamente rural se omite a ancestral relação entre o homem e o animal, assente no trabalho, no equilíbrio de ecossistemas, na escatologia, nas práticas medicinais, nas crenças, na alimentação, na inspiração literária e artística, na companhia, no vestuário, na afirmação de identidades individuais e coletivas, na consolidação de grupos e de solidariedades, etc., para não desagradar a quem apenas conhece dos animais a companhia e a fidelidade, nada está a fazer para o desenvolvimento sustentado dessa região e para a preservação do seu equilíbrio ecológico. Sem argumentos para atrair visitantes em massa, julgamos caber ao turismo o papel de potenciar economicamente um ecossistema genuíno, vender o que resulta do equilíbrio entre o homem e a natureza, na sua tradição e na sua modernidade. Isto quer dizer: na sua cultura.
Omitir uma originalidade diferenciadora para mostrar e evidenciar produtos que são iguais e melhores em muitos outros locais, parece-nos pouco inteligente para atrair turistas, para além de pouco respeitador dos autóctones.
Que isto venha de profissionais do turismo possuidores de grandes saberes técnicos, ainda pode ser compreensível, embora pouco desejável e até deplorável, o que não concebo é atitude, ou a falta dela, dos autarcas ribatejanos perante tão abstrusa opção.
Remato referindo o recente estudo do Politécnico de Santarém, mostrando que as três corridas de toiros realizadas por altura da Feira do Ribatejo na capital de distrito (as tais que não constam da brochura) movimentaram mais de um milhão de euros e recomendo a sua leitura aos autores da brochura e, já agora, aos autarcas mais distraídos.