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Uma nota especial sobre a Camoniana Victor Fontes doada à Casa-Memória de Camões pelo eminente professor. Achei o catálogo que Manuela de Azevedo, fundadora da associação, me ofereceu em tempos. Do inventário consta, a título de exemplo:  uma edição de «Os Lusíadas», Por Manoel da Lyra, de 1597, à custas de Estêvão Lopes. A Camoniana abrangia quatro séculos, desde 1632 a 1877, com alguns exemplares repetidos. Predominavam as edições de 1880, sendo cerca de 160 (parciais, completas, antologias e traduções) as obras de Camões. No que respeita às obras restantes, constituíam estudos sobre o Poeta e a sua obra, não faltando adaptações, paráfrases, romances, peças de teatro, etc.

 

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A divulgação em 1986 do inventário da Camoniana Victor Fontes doada à Casa-Memória de Camões mereceu na altura um público testemunho de homenagem à memória do eminente professor. Numa nota de abertura do catálogo, de autoria da direcção presidida por Manuela de Azevedo, escritora e jornalista, realçava-se  que «à sua qualidade de homem de Ciência reunia a de homem de cultura humanística».  Victor Fontes, antigo Director do Instituto de Anatomia, Especialidade de neuropsiquiatria infantil, espírito culto e com múltiplos interesses, coleccionou uma valiosa obra Camoniana que legou à Casa Memória de Camões em Constância. Este benemérito de Constância dedicou-se à arqueologia juntamente com seu irmão, com quem fundou o Museu Arqueológico de Odrinhas (Sintra). A Câmara de Lisboa atribuiu o seu nome a uma rua de Telheiras.  Victor Fontes nasceu em Lisboa a 15 de Outubro de 1893 e faleceu a 21 de Maio de 1979,  tendo os termos da oferta/legado  à associação de Constância sido continuados  pela sua viúva Maria Amélia Fontes e, por falecimento desta, por sua filha, Maria Leonor Fontes.

A confiança depositada na associação pelo Professor Doutor Vitor Fontes, coleccionador que, aos 14 anos, «se iniciava no gosto de ler Camões e de reunir o que dele lhe falasse»,  dependia de duas condições, a fazer fé na nota  em que nos apoiamos: 1ª – que a colecção jamais se dispersasse; 2ª – que ficasse devidamente acondicionada na Casa-Memória de Camões em Constância. Assim, no cumprimento dos compromissos assumidos, ditava a nota de Manuela de Azevedo, «esta associação só instalará a Camoniana Vitor Fontes em Constância, quando a Casa-Memória de Camões lhe oferecer as melhores condições de preservação».

A edição do catálogo da Camoniana Victor Fontes, documento valioso, assumida pela Associação e pela Direcção-Geral da Comunicação Social, deveu-se ao Departamento de Divulgação e aos seus directores, o escritor Mário Braga e o jornalista Cáceres Monteiro. Esse público reconhecimento consta da dita nota de abertura.

Generosa dádiva esta, a do Prof. Vitor Fontes, motivo para um reafirmado regozijo da direcção associativa, pelo enriquecimento do património cultural da Casa-Memória de Camões.

Teresa Saraiva, Conservadora do Arquivo Nacional  da Torre do Tombo, autora do inventário  a pedido da referida Associação,  em nota introdutória ao documento,  fornece-nos elementos preciosos. O espólio,  constituído  por 436 espécies bibliográficas e três pastas (contendo estas artigos de jornais, postais e gravuras referentes ao Poeta),  apresentava uma boa conservação havendo apenas dois ou três exemplares incompletos e uma ou outra capa solta. Assim o refere.

Ao percorrer todo o catálogo, confirma-se a cronologia avançada por Teresa Saraiva: a Camoniana abrange quatro séculos, desde 1632 a 1877, com alguns exemplares repetidos. Predominam as edições de 1880, sendo cerca de 160 (parciais, completas, antologias e traduções) as obras de Camões. No que respeita às obras restante, constituem estudos sobre o Poeta e a sua obra, não faltando adaptações, paráfrases, romances, peças de teatro, etc.

As edições constantes da Camoniana inventariadas por Teresa Saraiva, assevera a conservadora, «são em diversas línguas como o alemão, francês, inglês, latim, polaco, chinês, grego, arménio, holandês, dinamarquês, hebraico, espanhol, italiano, naturalmente para além do português, e foram publicadas em diversos países como Alemanha, França, Brasil, Itália, Inglaterra, e, claro, Portugal». Existem também duas obras multilingues e três bilingues, pode ainda ler-se.

Do inventário consta, a título de exemplo:  uma edição de «Os Lusíadas», Por Manoel da Lyra, de 1597, à custas de Estêvão Lopes;  uma edição de «Os Lusíadas» e «Rimas», dedicados a D. Rodrigo Cunha, por Pedro Craesbeek,  de 1609, à custa de Domingos Fernandes Livreiro; uma edição de «Os Lusíadas», de Pedro Craesbeek,  de1613;  uma edição de «Comédia-Filodemo», de 1615, de Vicente Álvares;  uma edição de «Vida e obras de Luís de Camões», Wilhelm Storck, primeira parte, tradução e notas de Carolina Michaelis de Vasconcelos, academia real das ciências, 1897.

A Camoniana Victor Fontes revela-nos no seu inventário que o coleccionador  reuniu tudo quanto dissesse respeito ao Vate, independentemente do seu valor formal e intelectual. O acervo abrange, por conseguinte, um significado muito variável nas palavras da inventariadora:  «(…) indo das obras de grandes camonistas, romancistas e outros escritores, a modestas homenagens cujo mérito ou contributo que prestam é o de testemunharem o interesse que o Poeta tem despertado ao longo do tempo, no País e no estrangeiro».

António Reis, antigo Secretário de Estado da Cultura do II Governo Constitucional, antigo Grão Mestre da Maçonaria, deu ordens por despacho, para instalação  do CIEC-Centro Internacional de Estudos Camonianos em Constância, onde iria figurar a biblioteca camoniana de Victor Fontes doada à Associação de Camões . O despacho (de que tive conhecimento através do meu saudoso amigo pessoal, o cronista Joaquim dos Mártires Neto Coimbra), não foi cumprido pela  então Comissão Instaladora do Instituto do Património Cultural e Natural, comissão que acabou dissolvida. Nos apontamentos do manuscrito do cronista (historiador local que mereceu elogios tanto de José Hermano Saraiva como de María Clara Pereira da Costa), o previsto Centro, passo a transcrever, “devia funcionar onde quer que as previsíveis cheias não afectassem o edifício reerguido, nem a camoniana, oferecida à Casa de Camões, pelo ilustre bibliófilo Victor Fontes”.

No apontamento do manuscrito de Joaquim pode mais ler-se que Manuela de Azevedo, fundadora da associação, esclareceu as entidades «de que as técnicas modernas preservam da humidade as ‘casas-fortes’, demais  que as espécies de qualidade, se prevê venham a ficar tão acima do nível das cheias mais ousadas que não é lícito pensar que algum dia tal casa-forte venha a ser atingida”.

À data de 7 de março de 2010, a então nova presidente da Casa-Memória de Camões  que substituiu Manuela de Azevedo, referia à SIC Notícias,  passa-se a citar: «do património da Casa-Memória, fazem parte, além de outras obras, alguns ” livros de inestimável valor” , como algumas edições de Os Lusíadas, um painel do pintor Espiga Pinto, a escultura Amor de Lagoa Henriques, uma casula e cartas de jogar do séc. XVI, uma coleção de tanagras”, e outros objetos encontrados em Constância». Entretanto, quis o destino, inexorável, que a negligência dos homens comuns, votasse à chuva e às intempéries, a descoberto céu, tão vetusta biblioteca, ante o silêncio das oficialidades pardas. O assunto tornou-se então público.

Com «Os Lusíadas» – lembrava José Maria Rodrigues – “não se aprende só a amar a pátria e, como consequência disso, a empregar todos os esforços para a tornar credora da consideração dos outros países. Por eles ficamos sabendo também como se afunda, como perece uma nação.” José Maria Rodrigues, Professor da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, dedicou grande parte da sua vida à aspiração de tornar a epopeia camoniana a base da educação nacional. Mas uma nação que não protege nem valoriza as espécies antigas do seu Poeta maior torna-se indigna dos seus.

Diz-se que a Camões tudo foi roubado. Até a tença, paga em más horas e de forma incompleta, mais tarde recuperada pela mãe (madrasta?)  por concessão de Filipe II de Espanha.

A Jorge de Sena, a palavra:

«CAMÕES DIRIGE-SE AOS SEUS CONTEMPORÂNEOS                         

Podereis roubar-me tudo:
as ideias, as palavras, as imagens,
e também as metáforas, os temas, os motivos,
os símbolos, e a primazia
nas dores sofridas de uma língua nova,
no entendimento de outros, na coragem
de combater, julgar, de penetrar
em recessos de amor para que sois castrados.
E podereis depois não me citar,
suprimir-me, ignorar-me, aclamar até
outros ladrões mais felizes.
Não importa nada: que o castigo
será terrível. Não só quando
vossos netos não souberem já quem sois
terão de me saber melhor ainda
do que fingis que não sabeis,
como tudo, tudo o que laboriosamente pilhais,
reverterá para o meu nome. E mesmo será meu,
tido por meu, contado como meu,
até mesmo aquele pouco e miserável
que, só por vós, sem roubo, haveríeis feito.
Nada tereis, mas nada: nem os ossos,
que um vosso esqueleto há-de ser buscado,
para passar por meu. E para outros ladrões,
iguais a vós, de joelhos, porem flores no túmulo».

A Camões tudo foi roubado: «As ideias, as palavras, as imagens/e também as metáforas, os temas os motivos/os símbolos». E a pergunta mantém-se: o roubo (Parnaso, etc) deu-se no século no seculo XVI, no século XX (é ler-se a crítica à obra de Sena) e ainda continua debaixo da «nudez crua da verdade, onde se desfaz o manto da fantasia»?

Jorge de Sena, de uma incontornável genialidade, também ele, injustiçado no seu tempo, vítima forçada ao exílio, parece querer resgatar Camões, através da ironia e da metonímia – poema intemporal, este. Sim! A democracia da abrilada ainda não capturou por enquanto a ironia.

Neste poema de Sena, «Camões dirige-se aos seus contemporâneos», o sujeito poético (onde cabemos todos nós) acusa os seus contemporâneos, por exemplo, de o votarem ao desprezo, na medida em que não o citam, rejeitam a sua poesia e aclamam outros.

José Luz

(Ex-Presidente do Conselho Fiscal e Ex-associado da Casa-Memória de Camões em Constância)

Fontes principais da presente crónica

Associação para a Reconstrução da Casa-Memória de Camões em colaboração com  a Direcção-Geral da Comunicação Social. (1986). Camoniana Victor Fontes. Oficinas Gráficas  da DGCS. Lisboa.

Cópia de manuscrito de Joaquim dos Mártires Neto Coimbra, historiador local de Constância  anos 70.

https://sicnoticias.pt/cultura/2010-03-07-casa-memoria-de-camoes-comecada-a-construir-ha-20-anos-vai-agora-ser-concluida

Sena, Jorge. (1961 ou 1963?). Metamorfoses. Edições 70, Lisboa, 1988.

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