O inspirador desta crónica é um senhor que ficou conhecido como o Lima da Cardiga ou o Almeida Lima da Quinta da Cardiga, mas nunca os cronistas que o mencionaram, indicaram o nome completo, provavelmente porque sendo muito conhecido, na sua época, tal não fosse necessário.
Dá-se a circunstância de ter havido dois irmãos Limas herdeiros da Cardiga, com nomes semelhantes, Joaquim José e José Joaquim, pelo que a tarefa de decidir qual deles seria o extravagante e boémio se baseou nos dados existentes na imprensa e documentos sobre a família Almeida Lima. Nas famílias endinheiradas, há, por vezes, problemas de heranças, ou outros relacionados com os bens existentes, pelo que o Diário do Governo do tempo dos ditos Limas foi uma boa fonte de informação.
Comecemos, então, a história biográfica da família Lima.
Joaquim José e José Joaquim eram filhos de Domingos José de Almeida Lima e de Ana Maria dos Reis. Os nomes dos seus pais podem não nos dizer nada, mas Domingos de Almeida Lima foi um homem riquíssimo, com grandes meios de fortuna.
Foi ele que comprou a Quinta da Cardiga, após a extinção das ordens religiosas em 1834, e na sequência da venda dos bens das mesmas ordens a particulares. A Quinta foi arrematada em 23 de janeiro de 1836, por 200 contos.
Os outros irmãos eram Maria Florentina, e uma meia irmã, Maria José d’Almeida Lima, que, na data da morte do pai, era menor, todos filhos naturais legitimados, porque Domingos de Almeida Lima nunca casou. Tinha feito grandes negócios no Brasil, de onde regressou, em 1824, para continuar, em Portugal, uma vida de grandes investimentos e acumulação de fortuna.
Para se fazer uma ideia do poder financeiro de Domingos José de Almeida Lima, basta dizer que foi sócio fundador da Companhia das Lezírias do Tejo e Sado, para cuja arrematação em praça, o próprio Almeida Lima e mais dois sócios entraram com um lanço de dois mil contos de réis, “em dinheiro de metal” (naquele tempo…), “para a compra de todas as lezírias do Tejo e Sado, com suas pertenças anexas, e com todos os direitos que lhes são aderentes” (segundo se lê nas Resoluções do Conselho de Estado e Secção do Contencioso Administrativo coligidas e explicadas por José Silvestre, de 1862).
Pelo mesmo Domingos, foi adquirida a Quinta do Paço do Lumiar, e tanto nesta como na da Cardiga, fez grandes investimentos em beneficiação dos imóveis existentes e dos espaços, e no caso da Cardiga, também rentabilização da parte agrícola, com uma gestão adequada e modernização segundo os parâmetros então existentes a nível europeu. Domingos Lima foi o introdutor, em Portugal, na sua Quinta da Cardiga, em 1843, do sistema de moagem da azeitona, com galgas movidas por máquina a vapor, de alta pressão. (Fernando Freire, “A Quinta da Lameira, os proprietários, o azeite e a lenda”, mediotejo.net)
Por morte do pai, em 23 de dezembro de 1845, intentou a meia irmã Maria José, nos tribunais, habilitar-se a herdeira dos bens e embargar as vendas dos mesmos, de que deu conhecimento público com anúncios nos jornais, e o facto de ter sido reconhecida pelo falecido como filha, embora espúria, e não ter sido contemplada no testamento, deve ter dado origem a versões que corriam na opinião pública, ou histórias contadas sobre o testamento, das quais se fez eco um periódico contemporâneo, A Matraca (periódico moral e político que se começou a publicar em 1847), com uma introdução que parece algo fantasiosa, mas com conteúdo passível de ser verídico, ao menos em parte, uma vez que cita nomes e factos. Transcreve-se o texto, para que não se perca o sentido da mensagem que segue:
Papel que foi achado na Igreja de Benfica no Domingo 28 de novembro [de 1847].
Joaquim António de Aguiar intrometeu-se com Domingos José d’Almeida Lima, do Largo dos Caldas, por este ser muito rico, e ter numerosas demandas, a fim de com o seu valimento apanhar-lhe muitos e muitos contos de réis, e em troca obter-lhe vitória nessas demandas, ainda que injustas da parte do Lima.
Este foi atacado de uma febre cerebral (ou como na verdade se deva chamar) e tinha um testamento feito segundo o que era notório; mas como este testamento não convinha aos que o rodearam depois do ataque, forjou-se outro testamento, o qual se fez estando Lima já morto, porém os rodeadores o fingiram vivo. Este testamento foi feito nos livros do tabelião António Simão de Noronha, e nele se declara que o testador o não assinava (como não assinou), porque o estado da sua debilidade o não permitia! Aguiar foi a primeira testemunha do testamento; Alberto Carlos Cerqueira de Faria a segunda; o Padre Manuel Joaquim Cardoso Castelo Branco a terceira; este e as outras duas testemunhas eram inquilinos do suposto legador.
Quinze dias depois de darem por morto o testador houve a patuscada das posses dos falsos herdeiros. Aguiar foi assistir à posse, que se tomou da Quinta da Cardiga, onde houve grande reunião.
N.B. Publicando este papel que nos veio à mão pelo modo acima indicado sendo-nos remetido pela pessoa que o apanhou na Igreja, pedimos a todas as pessoas que estiverem iniciadas nestes Mistérios de Lisboa, de que nada sabemos, que nos comuniquem o que souberem deste importante legado à irmandade de Santa Maria da Fonte. (A Matraca, 4 de dezembro de 1847)
Há ainda outra alusão, esta velada, à herança de Domingos Lima, no mesmo jornal, de 14 de dezembro, a propósito de uma vitória eleitoral:
A vitória do partido verdadeiramente nacional nas últimas eleições vai ser apresentada ao público em um quadro que representa a INDEPENDÊNCIA e a INDÚSTRIA NACIONAL triunfando pela urna com grande aplauso do povo português (…) e o cadáver da Maria da Fonte, conduzido tristemente ao cemitério em uma maca levada por dois mariolas – um deles pago com dinheiro inglês – o outro pago com dinheiro de uns falsos herdeiros que se diz haverem tido certa herança por meio de um testamento falso.
Diz, também, o mesmo periódico, em 29 de dezembro, que um outro jornal, a Carta Romana “abraçou a defesa” das testemunhas e do tabelião, mas A Matraca tinha, entretanto, tido conhecimento de outros factos pelos quais estavam persuadidos que as asserções contidas no dito papel que foi encontrado no chão, na igreja de Benfica, não eram destituídas de fundamento.
Verdadeiro ou falso o testamento, Joaquim José e José Joaquim são herdeiros da Quinta da Cardiga, de dinheiro e de ações, e de uma série de imóveis, em Lisboa, que, anos mais tarde, no que respeita a Joaquim José, aparecem hipotecados ou arrematados para pagamentos de dívidas. Maria Florentina recebeu como herança a Quinta do Paço do Lumiar.
O Lima da Cardiga, como se verá pelos testemunhos, dedicou-se a esbanjar a fortuna recebida, em grande estilo. Pinto de Carvalho (Tinop, História do Fado) chamou-lhe “um pândego ultraperdulário”. O mesmo jornalista o menciona em Lisboa de outros tempos – Figuras e factos, como frequentador assíduo do Teatro de São Carlos.
Eduardo Sucena, na revista Olissipo n.º 150 (Os cafés na vida social, política e intelectual de Lisboa), evoca os antigos cafés de Lisboa, o Martinho da Arcada, o Nicola, o Marrare e outros, o Marrare fundado por um napolitano, e onde, entre os frequentadores, se destacava o Lima da Quinta da Cardiga, “figura curiosíssima e das mais bizarras da época – um estroina que desbaratou fortunas, não só em Lisboa, mas em Paris e Londres”, o que hoje chamaríamos um playboy, acrescenta Sucena. E refere, depois, um banquete em Paris, oferecido em honra da bailarina Celeste Mogador, no Café Hardy, em que o Lima, já de madrugada, “bem bebido, resolveu acabar a festa levantando a mesa em peso, e partindo a loiça toda, que era de Limoges”.
Em Londres, convidou as cocotes mais conhecidas da cidade para um banquete, e mandou-as expor-se desnudas às janelas, o que provocou escândalo e obrigou à intervenção da polícia.
Mas a melhor história é a dos seus amores com Marie Duplessis, a inspiradora da personagem Marguerite Gautier, a Dama das Camélias.
Pinto de Carvalho limitou-se a dizer que o Lima tinha conhecido Marie Duplessis, mas Eduardo Sucena vai mais longe. Foi seu amante, e em sua casa, no Boulevard da Madalena, que frequentava assiduamente, “ofereceu ceatas que deram brado”.
Marie Duplessis morreu em 3 de fevereiro de 1847, de tuberculose, pelo que o seu convívio com o Lima da Cardiga poderá ter ocorrido sendo Domingos Lima, o pai, ainda vivo, ou, hipótese plausível, no ano que se seguiu à sua morte, beneficiando da herança recente do Lima.
Em 1849, Joaquim José pôs em leilão todo o seu mobiliário e objetos de sua casa, por motivo de “retirada do Reino”, ficando o irmão José Joaquim a gerir a Quinta, e aparecendo ela como sua residência em 1851. Nessa época, os três irmãos já são casados, Joaquim José com Celina Almeida Lima (Celina ou Celine, nome pouco usual em Portugal, poderá ser de origem francesa ou francófona), José Joaquim com Georgina Henriqueta Oom Wheelhouse e Maria Florentina com José Maria da Costa Bueno e Nieto Cevallos de Vilalobos Hidalgo y Moscoso, que veio a ser 1º visconde do Paço do Lumiar.
Em 1861, José Joaquim continua proprietário da Quinta da Cardiga e é quem se ocupa da sua gestão. E deve fazê-lo com brilhantismo, porque lhe coube receber o rei D. Pedro V que, em outubro desse ano, vindo de uma visita no Alto Alentejo, e regressando por Abrantes, Constância e Barquinha, para observar como estavam a decorrer os trabalhos da ponte ferroviária sobre o Tejo, foi dormir à Cardiga:
Sobre essa parte da viagem, informa o Diário do Governo de 9 de outubro de 1861:
Portalegre, 8 do corrente, às dez horas da manhã
Ex.mo sr. presidente do conselho de ministros – Lisboa
Cheguei ontem de noite a esta vila, por ter de me demorar na Golegã por causa do aposento para Sua Majestade.
El-Rei ficará ali na quinta da Cardiga, onde também se faziam preparativos para a receção real.
Na Barquinha e Constância preparam-se barcos para Sua Majestade poder ver mais de perto as obras da ponte do caminho de ferro sobre o Tejo, e para que siga sua jornada pelo Tejo até à Cardiga, se for do seu agrado. (…)
Tenho presenciado o prazer com que todas as autoridades e câmaras municipais e os habitantes dos concelhos deste distrito, por onde El-Rei vai transitar, procuram, à porfia, demonstrar seus sentimentos de dedicação e respeito à augusta pessoa de El-Rei. = Guerra Quaresma.
Receber o rei exigia conforto, instalações adequadas e “savoir faire”, e José Joaquim e Georgina Wheelhouse terão estado à altura dessa distinção. Foi a última viagem do rei bem-amado do povo. Logo depois, adoeceu com umas “febres paludosas”, e veio a morrer em 11 de novembro de 1861.
Mais três irmãos do rei foram atingidos pelas febres, e dois deles morreram. O terceiro, o infante D. Afonso, foi convalescer na casa dos Paços do Lumiar, da irmã dos Joaquins, Maria Florentina Almeida Lima, e do cunhado José Maria Moscoso, os quais tinham oferecido o palacete para a convalescença do infante, uma habitação bem decorada, com belos jardins. E aí o foram visitar o pai, D. Fernando II e o irmão o rei D. Luís. E por esse gesto gentil, foi José Maria Moscoso agraciado com o título de visconde.
Quanto a José Joaquim, o médico Xavier da Cunha, que esteve na Barquinha como subdelegado de saúde, e nessa qualidade elaborou um relatório, nele elogia grandemente este José Joaquim, “um homem honrado, cavalheiro que possui uma alma de príncipe e que foi, quando proprietário da Quinta da Cardiga, um elemento verdadeiramente educador para a Barquinha”.
Xavier da Cunha veio à Barquinha em 1869, a Quinta da Cardiga já tinha sido vendida à família Lamas em 1867.
Dos perfis dos dois irmãos, parece ser Joaquim José o estroina perdulário, o esbanjador de fortunas, devido aos arrestos de bens que aparecem na imprensa e à sua ausência notória da Quinta. A partir de dezembro de 1858 perde-se-lhe o rasto, não mais aparecem notícias, nem outros documentos. Ter-se-á retirado, em definitivo, do Reino, com a sua dama Celina.
Nota: A acrescentar às fontes mencionadas no texto, foram consultados “Cardiga ou História de uma Quinta”, de Luís Miguel Preto Batista, Quinta do Conde do Paço – Sistema de Informação para o Património Arquitetónico, D. Pedro V – O Portal da História, outros exemplares do Diário do Governo, para além dos mencionados, registos paroquiais e o site Geneall.