A recentemente publicada coletânea de “Ensaios de História Contemporânea do Ribatejo”, de Manuela Poitout, reúne nove ensaios históricos, abrangendo um lapso temporal que vai do advento do Liberalismo, nos primeiros anos do séc. XIX, aquando das Invasões Francesas, à década de 1940, já em plena ditadura salazarista. Ainda que com foco na nossa região e em figuras de dimensão sobretudo local, os estudos reunidos refletem (sobre) um país e um tempo que, justamente, sofreram profundas alterações desde o início do séc. XIX, com protagonistas em forte dissensão e “visões do mundo” muito extremadas e conflituantes, que ainda hoje marcam o que somos coletivamente. São 460 páginas densas e rigorosas, mas escritas num estilo fluido e de leitura acessível a não especialistas. Os nove ensaios saíram todos previamente na revista “Nova Augusta”, publicação anual da câmara de Torres Novas.
Os três primeiros ensaios – “Abordagens biográficas da história local” – debruçam-se sobre três figuras associadas à nossa região, que são excelentes exemplos, cada um a seu modo e por razões muito diferentes, do “espírito do tempo” em que viveram.
Clementina Relvas (1857-1934), nascida na Golegã, filha de Carlos Relvas e irmã do republicano José Relvas, teve um percurso de vida que diríamos de romance, talvez algo inconsequente, mas ainda assim interessantíssimo, vivendo toda a vida dividida entre a obediência aos preconceitos e exigências da sua classe social, que nunca renegou, e a afirmação de uma liberdade, que nela, naturalmente, não se pode dissociar da sua “condição feminina”, numa sociedade profundamente patriarcal, pronta a ostracizar quem a pusesse em causa. Clementina Relvas, que em boa hora Manuela Poitout traz a esta coletânea, é uma figura quase lendária, só de alguma forma comparável a Adelaide Coelho da Cunha, que em 1918 escandalizou o Portugal já republicano e “progressista”.
O segundo ensaio dá-nos a conhecer o torrejano Carlos Azevedo Mendes (1888-1962), que será um típico exemplo das elites salazaristas. Provinciano, conservador, católico, devotado à causa pública e social e ocupando lugares de poder e influência nas mais diversas áreas ao longo de décadas, tendo sido “inclusive” deputado entre 1945 e 1957, foi um dos elementos mais importantes na primeira fase do Centro Académico de Democracia Cristã (CADC), onde germinou a filosofia política do que viria a ser o Estado Novo, enquanto regime autoritário de cariz cristão e corporativo. O CADC foi formado na universidade de Coimbra no princípio do séc. XX por um grupo de estudantes em que pontuavam também o jovem Oliveira Salazar e o futuro cardeal Cerejeira. Não obstante a devoção incondicional ao Estado Novo e a Salazar, Carlos Azevedo Mendes, já nos últimos dos quinze anos da presidência da câmara de Torres Novas (de 1937 a 1950), sofreu um sério revés, ao não ter conseguido impedir a transferência da Escola Prática de Cavalaria, que, depois de outros planos, acabou por sediar-se em Santarém, onde ainda hoje se mantém.
O terceiro ensaio biográfico trata de uma figura da oposição ao Estado Novo, o médico Raul Weelhouse, que não deixa de refletir o espírito do tempo, mas de sinal contrário. Membro da Maçonaria, é um convicto “reviralhista” e logo nos primeiros anos do Estado Novo é deportado para a ilha Terceira, sendo libertado dois anos depois, em 1935. Já nos anos de 1940, no imediato pós-guerra, é um dos subscritores do Movimento de Unidade Democrática (MUD). Weelhouse exerceu medicina no Sardoal grande parte da vida, onde era tratado por “doutor Raul” e muito considerado pela população. Curiosamente, nas duas últimas décadas da sua vida, não se lhe conhece atividade política, embora Manuela Poitout afirme que continuou a pertencer à Maçonaria.
O segundo grupo de ensaios começa por abordar a “emancipação do Entroncamento do concelho de Torres Novas”. Sendo certo que esta emancipação foi, de alguma forma, um “parto difícil”, uma vez que a povoação se desenvolveu, rodeando a estação, em território que pertencia aos concelhos de Torres Novas e da Barquinha, cuja fronteira era a ribeira de Santa Catarina que atravessa a cidade atual. E, evidentemente, nenhum destes dois concelhos cedeu território sem colocar reservas. O ensaio realça a influência de José Duarte Coelho na criação da freguesia do Entroncamento, desanexada da freguesia torrejana de Santiago em 1926, agregando-se entretanto a Vila Nova da Barquinha, como pretendiam os entroncamentenses, pela proximidade à sede deste último concelho. Quando em 1932, dado o seu crescimento exponencial, foi elevado à categoria de vila, o Entroncamento já contava com 6000 habitantes. Pouco depois, José Duarte Coelho pretende ir mais longe: a criação do concelho do Entroncamento incluindo nele a integração do concelho da Barquinha. O novo concelho surgiu em 1945, mas a pretensão só foi parcialmente conseguida.
O ensaio seguinte relata o demorado conflito que envolveu as câmaras de Torres Novas e da Barquinha no projeto de construção da estada que ligaria Árgea ao Entroncamento, onde trabalhavam, na ferrovia, muitos habitantes daquela aldeia torrejana. Neste curioso conflito, que obrigou até à intervenção de Salazar, cruzam-se rivalidades concelhias e algum caciquismo, para além de hostilidades e interesses pessoais. Só em 1975 é que a estrada que hoje conhecemos foi finalmente concluída.
“O Entroncamento e as lutas ferroviárias no tempo da Primeira República” debruça-se sobre o ambiente generalizado de sucessivas greves ferroviárias, entre muitas outras, que marcaram os 16 anos da Primeira República (1910-1926), centrando-se em particular na greve de 1914, que, ao contrário do que sucedera em 1911, não foi bem organizada nem bem sucedida e na qual o Entroncamento, precisamente por ser um entroncamento de linhas fundamentais e já um grande centro ferroviário, teve um papel de destaque, tendo aliás a sua estação sido ocupada por militares e forças de segurança.
No último grupo de ensaios, recuamos até ao tempo das Invasões Francesas (1807-1811), um acontecimento que está na base do Portugal contemporâneo, pelo que espoletou de reações em cadeia, que terminaram na posterior e definitiva vitória do Liberalismo e da monarquia constitucional. O exército napoleónico também passou pela região, sobretudo durante a primeira invasão, comandada pelo general Junot, e fez estragos, como aliás em toda a parte, desencadeando revoltas populares e episódios de guerrilha contra os franceses. De entre os guerrilheiros desta região, como lhes chama a autora, destaca-se o lendário Madrugo, cuja memória foi divulgada em grande parte por Júlio Sousa e Costa, escritor do séc. XX que é objeto do último ensaio.
Um episódio em alguns anos posterior às Invasões Francesas, mas a elas indiretamente associado, foi o assassinato do general Gomes Freire de Andrade, em 1817, alegado cabecilha de uma intentona liberal e de influência francesa para aniquilar o poder que os ingleses, com a corte no Brasil, então detinham no país. Foram o torrejano João de Sá, juntamente com Pedro Morais Sarmento e com José de Andrade Corvo (tio de João de Andrade Corvo, um dos maiores vultos da Regeneração, nascido em Torres Novas), que denunciaram Gomes Freire de Andrade e o levaram a ser enforcado no forte de S. Julião da Barra. Onze companheiros seus foram mortos em Lisboa, no Campo de Santana, depois rebatizado “Campo Mártires da Pátria”. É um episódio triste de baixeza e delação.
O último ensaio reconstitui o percurso de Júlio de Sousa e Costa (1877-1961), um lisboeta de nascimento que se tornou funcionário público e que viveu na Barquinha durante grande parte da sua vida. Tendo conhecido três regimes políticos, como salienta a autora – a monarquia, a Primeira República e o Estado Novo –, a sua notoriedade advém-lhe do seu muito convicto republicanismo e de ter sido autor de várias obras, hoje esquecidas. Em 1943, publicou Júlio de Sousa e Costa um livro sobre o regicídio de 1908, em que se compadece em demasia com o “assassinato dos assassinos” do rei D. Carlos, o que, provocando suspeitas, o levou a ser preso pela Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (que pouco depois daria lugar à PIDE), tendo passado cerca de dois meses na tristemente famosa cadeia do Aljube. Sousa e Costa dedicou-se ainda a uma intensa atividade jornalística e investigação histórica a nível regional, com especial incidência no período das Invasões Francesas.
As breves resenhas que fui fazendo dos nove ensaios que compõem esta coletânea deixam de lado imensas informações muito relevantes que, dada a natureza desta recensão, não puderam aqui ser incluídas, pelo que fica o apelo à leitura integral do livro. Ademais, em todos os ensaios, a autora tem a preocupação de enquadrar no âmbito nacional, e rigorosamente, os acontecimentos e as personalidades sobre as quais escreve, e essa não será uma das qualidades menores deste volume.
Ao excelente trabalho de edição, da responsabilidade de João Carlos Lopes, faltará apenas a informação da proveniência exata de cada um dos ensaios (número e data das edições da “Nova Augusta” onde inicialmente foram sendo publicados), e o leitor entusiasmado que eu fui reclamou uma ou outra vez por mais ilustrações. Uma última palavra para a capa e contracapa do livro, em que se reproduz por inteiro uma belíssima fotografia (que parece ser dos primeiros anos do século XX), um instantâneo povoado, sem ponta de pose ou de postal ilustrado, que nos dá o flagrante “espírito do lugar” da estação do Entroncamento.
Arnaldo Marques